segunda-feira, 18 de agosto de 2008

NEWTON VARELA

Ícaro do Sul
(A NEWTON VARELLA)

(Por Agilmar Machado, da Academia Criciumense de LetraS, patrono e ocupante da Cadeira n.21)


O mais famoso avião particular da região sul catarinense, nas décadas de 50/60, pertencia ao então Juiz de Direito, exímio piloto e instrutor de pilotagem aérea, Newton Varella, o Varelinha.O prefixo que seu elegante “paulistinha” ostentava era PP-RUT.
Sua influência buscou esse prefixo em homenagem à dona Ruth Varella.O nome de Varelinha marcou época na história da aviação no sul catarinense, pelos seus meritórios princípios.Tendo servido, como juiz, em várias comarcas da região sul catarinense, por onde passou, Newton Varella sempre devotou especial carinho e atenção à aviação civil.Inúmeros são os pilotos que obtiveram brevês, graças aos completos e precisos ensinamentos de Varelinha. Dentre outros, podem ser enumerados: Dite Freitas, Adamastor Rocha, Waldir Neves, Frederico (Lila) Casagrande (Criciúma), Omero Clezar, Manoel Salvato (Nelinho), Edgar Orige (Araranguá), José Trento e Aurélio Trento (Urussanga), além de tantos outros que prestaram relevantes serviços à comunidade, com seus pequenos aviões.José Trento foi continuador da obra de Varella na região de Urussanga, por volta de 1953, quando este deixou aquela Comarca, ministrando aulas de pilotagem num improvisado campo de pouso localizado numa propriedade de Estação Cocal.
Na verdade uma pastagem de relativas proporções gentilmente cedida pela família Meneghel onde, antes de cada procedimento de pouso ou decolagem, cumpria ao próprio piloto ou aspirante espantar o gado para um só lado da propriedade, deixando livre o trilho já definido pelos pneumáticos dos vários paulistinhas que ali operavam.Quando em terra taxiava-se pelo pasto para repontar os bichos; se no ar, os rasantes eram a única forma de fazê-lo.Com a saída de Newton e, conseqüentemente, de seu eficiente e sempre disponível Rutinha, foi doado ao modesto aeroclube de Urussanga um aparelho que prestara serviços de instrução na entidade congênere de
Itajaí. Estava “no osso”.
Com os conhecimentos mecânicos de José e Aurélio Trento, o avião foi todo reformado, não sem antes terem alguns aventurado voar nele da forma que chegou: motor “baleado”, fuselagem toda remendada com adesivos, circuito elétrico comprometido e sistema de combustão bastante deficiente: em alguns pontos dos condutos mechas eram usadas para sanar vazamentos.A bóia do reservatório de combustível não funcionava: tinha-se que usar uma varinha qualquer para medir a gasolina e se ter certeza de que havia reserva suficiente pelo menos para alguns minutos no ar. Era um potencial gerador de panes, até então.Varella era natural de Laguna. Ao se aposentar, estagiou por um considerável período como observador brasileiro junto à NASA.Depois de cair 28 vezes, ele, como José Trento, vieram a falecer em acidentes rodoviários... Ironia do destino!

HONRA AO MÉRITO

A Standard Oil do Brasil (ESSO), conhecida multinacional de petróleo e derivados por muitos anos manteve nas rádios, Farroupilha, de Porto Alegre, Tupi, de São Paulo, Nacional, do Rio de Janeiro, dentre poucas mais do norte e nordeste brasileiro, o famoso noticiário “Repórter Esso”.Herón Domingues, gaúcho de São Gabriel, foi, indubitavelmente, o mais correto apresentador do impecável noticioso, na Rádio Nacional, além de ter chegado à direção da privilegiada emissora estatal com a saída de Vitor Costa.A ele foi confiado um famoso quadro-homenagem, na emissora, do conceituado patrocinador (ESSO), que constituía na outorga periódica de medalhas de ouro de Honra ao Mérito, a brasileiros que notoriamente se destacassem de alguma forma muito especial.Foram relativamente poucos os aquinhoados com tal distinção já que precedia a escolha dos contemplados uma minuciosa pesquisa e acuradas análises procedidas por uma rígida comissão de julgamento.Newton Varella foi um dos mais comentados agraciados, especialmente pelo motivo que o levou a ser selecionado para a honraria, tendo merecido uma ampla cobertura na inesquecível festa de entrega, frente a destacadas autoridades nacionais, na cidade do Rio, então capital federal.Naquele tempo as operações aéreas noturnas nesta região simplesmente inexistiam, pela carência de segurança nos campos de pouso e, no caso dos aviões menores, pela precariedade dos próprios equipamentos de vôo.O teco-teco, como era chamado carinhosamente o popular monomotor paulistinha, possuía apenas manche, cabo de aceleração, altímetro e controle de combustível por gravidade. O tanque ficava localizado exatamente à frente do pára-brisa, no nariz do avião, com uma bóia de cortiça na parte interna do reservatório, ligada por um filete de aço à parte superior externa.Na extremidade superior uma bolinha vermelha (como bóia de pesca), marcava a disponibilidade de combustível, na base do “olhômetro”...É evidente que, com equipamento dessa rudimentar categoria, seria humanamente impossível procedimentos de subida ou descida em qualquer aeroporto, durante a noite.Mas Varella nunca acreditou no impossível, enquanto pilotou seu avião. De todas as 28 vezes que veio ao solo em “queda livre”, somente um osso de costela quebrado foi o saldo dos acidentes sofridos.Ria-se, contando somente episódios positivos, até de suas quedas! Ele não soube somente voar; foi exímio também em cair... com proverbial competência!Aos discípulos prevenia freqüentemente durante as informais aulas teóricas e mesmo em vôo: “em caso de pane irreversível, quando a última esperança abrir a sanefa e cair fora, façam de conta que vocês são compostos unicamente de cabeça e espinha dorsal: protejam essas duas partes da carcaça. O resto deixem quebrar que tem funilaria lá em baixo prá remendar”.

SOLIDARIEDADE HUMANA

Quando ainda em Urussanga, certa noite Varella foi acordado por uma aflita mãe cujo filho tinha, bloqueando a traquéia, uma semente de melancia. Estava à beira da morte.Os recursos médicos da região haviam sido esgotados.A única alternativa era levar o paciente para São Paulo, onde poderia ser operado. Mas para isso havia um restrito prazo. Cada minuto se fazia precioso, pois poderia ser o último.Solicitado, Varelinha não teve dúvidas: reuniu seus inseparáveis amigos, irmãos José e Aurélio Trento e Padre Agenor Neves Marques, para que iluminassem o irregular potreiro do Meneghel.Três automóveis seguiram para lá e se postaram estrategicamente em ambas as cabeceiras da pista improvisada.Somente Varella e o menino agonizante, ocupavam os dois únicos bancos do pequeno Paulistinha.Noite fechada. Ar pesado. Expectativa. Apreensão. Olhares se cruzavam, preocupados.Parece que contrariando tudo isso, ali estava o Rutinha, focinho ligeiramente empinado, com um ar de arrogância, aguardando orgulhoso e impassível sua missão: acionado o “start”, um facho de fumaça-rica explodiu luminoso, expelido pelos escapamentos laterais.Sorte lançada: destino final, São Paulo.
Sem iluminação alguma a não ser a tênue luz do painel a aeronave logo rasgou o espaço e sumiu na densa escuridão.Na lembrança dos que presenciaram a subida, ficou, por alguns minutos, o roncar firme exibindo a saúde do confiável motor Continental que equipava o valente PP-RUT, o Rutinha, como era carinhosamente chamado.É claro que, ao invés de uma vida, a partir daquele momento extremo, duas muito preciosas estavam em jogo com um mínimo percentual de chance de sobrevivência para ambas. Até o mais inexperiente aluno era capaz de avaliar a gravidade do momento.Por isso a apreensão dos que ficaram, foi evidente, especialmente pelo que Varelinha representava para todos; porém, se dependesse de sua coragem e competência ele era capaz de tentar a façanha até de planador, não fosse a longa distância que o desafiava.Na escuridão que se seguiu logo após a subida houve quem comentasse, a título de “consolo”, que, se o pior viesse a acontecer, Varella se despediria do mundo certamente como mais almejava (se tivesse escolha): empunhando o manche de seu avião.Até por que ele era mais que um simples piloto, era um mito da aviação civil no interior do Brasil.
Seu nome foi uma lenda viva, infinitamente maior como aviador, do que como Magistrado.Tomou a rota marítima, guiado pelas constelações e eventuais cidades litorâneas que conhecia a fundo, até pelos escassos luminosos de néon que eventualmente possuíssem.Para abastecimento, programou o primeiro pouso em Florianópolis, onde não teve problemas devido à quase total ausência de fiscalização das autoridades aeroviárias naquela hora da noite. Abastecido, levantou novamente.Em Curitiba, após enfrentar violenta turbulência, comum na região do Vale do Itajaí, oficiais da aeronáutica civil já o aguardavam, alertados posteriormente à decolagem de Florianópolis, por alguém que não estava entendendo o que acontecia e denunciara o piloto, via rádio.Ao descer no aeroporto Afonso Pena, em cujas proximidades, pouco anos depois morreriam, Nereu Ramos, Leoberto Leal, Jorge Lacerda e Sidney Nocetti (quando da queda de um Convair 440 da Cruzeiro do Sul. Em 1958), Varella foi interceptado e ameaçado de detenção e também de apresamento do avião.Identificou-se como juiz, mas pouco adiantou. Então, desesperado, começou a implorar, aos prantos, que a ele concedessem a oportunidade de salvar uma vida. A vida de um adolescente que merecia viver e estava às portas da morte, e no interior do avião.Um oficial, após checar a exígua cabina do Rutinha e a veracidade do que dizia, enternecido pelo desespero de Varella, permitiu a decolagem.Novos perigos na rota seguinte, em face de irregularidade geográfica do terreno que propiciava mais e violentas turbulências.Na noite cerrada, ele a tudo venceu galhardamente.Quase pela manhã, pousava, ainda clandestinamente, no movimentado aeroporto de São Paulo. Novamente graves problemas com o controle de pousos e decolagens. Afinal, um “penetra” furara o movimentado espaço aéreo e burlara a lei, arriscando-se em meio a dezenas de aviões de carreira em sucessivos procedimentos de pousos e decolagens!Novo clamor. Veio uma ambulância.Quando esta chegou, Varella passou as devidas instruções aos para-médicos, pondo o seu paciente a caminho do hospital, em cujo centro cirúrgico iria ser operado, de imediato, o adolescente.Chorava, desta vez de felicidade.
Ato continuo, Varelinha ofereceu as duas mãos para ser algemado e preso, bem como estendeu a chave de partida de seu avião. - “Agora sim - balbuciou com a voz embargada - prendam-me! Façam-no em nome da Lei”.
As próprias autoridades aeroportuárias, durante os episódios da noite, haviam passado à imprensa, a notícia de um pequeno avião que vinha clandestinamente do sul rasgando o espaço aéreo e pretendia chegar a São Paulo.À chegada de Varella, a imprensa invadiu o aeroporto e procurou inquirir o piloto.Ao tomar conhecimento dos motivos que o levaram a toda àquela temerária aventura, tudo mudou: a partir daquele momento, estava escrita, no honroso currículo de Newton Varella, uma das mais emocionantes histórias da vida de um piloto particular e de um homem de bem.Quiçá o mais comovente registro da pujante epopéia de toda a longa trajetória de heróicos feitos da aviação civil deste país.
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Esta singela homenagem que tributamos à inesquecível figura de Newton Varela, rabiscada na forma de um esmaecido registro (que não fosse ora efetuado poderia injustamente cair no mais lamentável esquecimento), dedicamos aos seus familiares, às memórias de João Pacheco dos Reis, o Pachequinho, Valdir Neves, Nelinho, Dego Orige, Aurélio, e José Trento; à sensibilidade do extremoso Monsenhor Agenor Neves Marques, à lealdade do também saudoso Dite Freitas, aos encomiosos sentimentos de Adamastor Rocha, amigos inseparáveis de Varelinha, e, de forma toda especial, verdadeira e reconhecida, ao nobre Juiz Newton Varela Filho e ao major paraquedista, Clávius Varella, irmão de Newton, em cujas veias corre o mesmo e bravo sangue do nosso inesquecível amigo.
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Que fiquem gravadas, de forma indelével, nos anais da história da aviação civil precursora do sul catarinense, duas fases referenciais honrosamente distintas: tudo o que se relaciona à aviação no sul, será ilegítimo se não tomarmos, como parâmetros básicos, dois únicos períodos: o que antecedeu e o que sucedeu a empolgante trajetória de Newton Varella, cujos exemplos na arrojada forma de voar, no total desprendimento e na sempre presente solidariedade humana, foram simplesmente notáveis. É pena que nossa memória geralmente não busque alcançar exemplos grandiosos como este e de tantos outros heróis, anônimos ou não, que um dia passaram pela vida legando-nos tão belos, assinalados e sábios ensinamentos!
É pena...
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Com os nossos respeitos, “velho pintacuda", onde você estiver sobrevoando a imensidão do agora perene "céu de birgadeiro" (A.M.).

Agilmar Machado
Revista Acadêmica II